1. Introdução

No ordenamento jurídico instituído pela Lei n.º 23/96, de 26 de julho iremos tentar perceber se o consumidor, “cai” perante o utente, ou mantem-se “firme“, como figura central de uma vasta legislação destinada a proteger os interesses do consumidor e essencial para o bom funcionamento de uma economia de mercado, nomeadamente o mercado único europeu, na medida em que visa criar um ambiente de crescimento inteligente, inclusivo e sustentável, importante para incentivar a procura e dinamizar a economia. Da mesma forma que, no plano interno, dá-se assim cumprimento ao desígnio constitucional no âmbito social e económico instituído pelo artigo 81º n.º 1 alíneas i) e j) da Constituição da República Portuguesa, ou seja, “Garantir a defesa dos interesses e os direitos dos consumidores” e “Criar os instrumentos jurídicos e técnicos necessários ao planeamento democrático do desenvolvimento económico e social”, respetivamente.

2. Os Serviços Públicos Essenciais

Com a publicação da Lei n.º 23/96, de 26 de julho, criou-se no ordenamento jurídico Português alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais. Ou seja, mostrou-se essencial para o legislador disciplinar de forma mais exaustiva os contratos celebrados para a prestação de serviços púbicos, considerados essenciais.
Tais serviços, na versão original da LSPE, eram os seguintes:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia elétrica;
c) Serviço de fornecimento de gás;
d) Serviço de telefone.

Tendo sido objeto de sete alterações , atualmente a LSPE abrange os seguintes serviços:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia elétrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural e petróleo liquefeitos canalizados;
d) Serviço de comunicações eletrónicas;
e) Serviços postais;
f) Serviços de recolha e tratamento de águas residuais;
g) Serviços de gestão de resíduos sólidos;
h) Serviço de transporte de passageiros.

Desta forma, podemos constatar que os serviços públicos essenciais, entre 1996, data da publicação da versão original da lei, e 2019, data da última alteração, conseguiram conquistar mais quarto serviços (os serviços postais, o serviço de recolha e tratamento de águas residuais, os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos e o serviço de transporte de passageiros), e clarificaram quais os serviços de fornecimento de gás abrangidos (gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados) e serviços de telefone que, mais do que uma clarificação, resultou numa adaptação à evolução do setor das comunicações, abrangendo assim o telefone fixo e móvel, a televisão por cabo, a internet e outros serviços de comunicações eletrónicas. Neste sentido, a Lei das Comunicações Eletrónicas, instituída pela Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro e que sofreu várias alterações , define na alínea dd) um vasto número de serviços da seguinte forma “os sistemas de transmissão e, se for o caso, os equipamentos de comutação ou encaminhamento e os demais recursos, nomeadamente elementos de rede que não se encontrem activos, que permitem o envio de sinais por cabo, meios radioeléctricos, meios ópticos, ou por outros meios electromagnéticos, incluindo as redes de satélites, as redes terrestres fixas (com comutação de circuitos ou de pacotes, incluindo a Internet) e móveis, os sistemas de cabos de electricidade, na medida em que sejam utilizados para a transmissão de sinais, as redes de radiodifusão sonora e televisiva e as redes de televisão por cabo, independentemente do tipo de informação transmitida”
Sabemos assim quais são os serviços públicos essenciais, mas pretende-se aqui perceber porquê estes serviços e não outros, de forma a dar resposta aos objetivos deste trabalho, nomeadamente responder à pergunta o que são serviços públicos essenciais.
O início da resposta encontra-se na exposição dos motivos da Proposta de Lei n.º 20/VII, que veio depois a dar origem à LSPE. Aqui pode-se ler que “É tarefa do Estado prover à satisfação de necessidades iniciais e contribuir para o bem-estar e a qualidade de vida de todos. O cumprimento deste imperativo constitucional requer que o Estado se não desinteresse do modo como ele é conseguido e, designadamente, dos termos e condições em que os bens são fornecidos e os serviços prestados. (…) Domínio tradicional do Estado, Regiões Autónomas, autarquias e empresas públicas, os serviços públicos essenciais, já hoje entregues também a empresas privadas, são fundamentais para a prossecução de um nível de vida moderno e caracterizam-se tendencialmente pela sua universalidade, por serem prestados em regime de monopólio (local, regional ou até nacional) e por deverem atender a envolventes especiais, que não a uma mera óptica puramente comercial ou economicista. Isso implica que a prestação de serviços públicos essenciais deva estar sujeita ao respeito por certos princípios fundamentais, em conformidade com a índole e as características desses serviços – princípios da universalidade, igualdade, continuidade, imparcialidade, adaptação às necessidades e bom funcionamento -, assim implica que ao utente sejam reconhecidos especiais direitos e à contraparte, impostas algumas limitações à sua liberdade contratual”.
Tornando-se ainda mais claro a razão da opção por esses serviços a intervenção da Ministra do Ambiente ELISA FERREIRA aquando da apresentação desta proposta de lei, referindo que “Nos termos da Constituição da República, é tarefa do Estado prover à satisfação de necessidades essenciais e contribuir para a qualidade de vida dos cidadãos, o que implica, obviamente, que o Estado não descure as condições em que, quer os bens, quer os serviços essenciais são fornecidos ou prestados. No entanto, se é verdade que em todos os domínios do consumo é preciso assegurar o exercício dos direitos dos consumidores, não deixa de ser também verdade que mais necessário ainda se torna assegurá-lo em sectores onde os bens ou serviços não são quaisquer mas são bens e serviços essenciais à vida e dos quais não se pode prescindir” – DAR I série, n.º 56/VII/1, de 12 de Abril de 1996, p. 21.
Optou assim o legislador por um leque de serviços que, para além de satisfazerem necessidades básicas e primárias dos cidadãos, também eram, historicamente, prestados pelo próprio Estado. Reconhecendo-se que passando estes serviços a serem prestados por privados e, geralmente, numa situação de monopólios naturais, o consumidor ficaria mais desprotegido, criando-se assim situações de desequilíbrio a favor dos prestadores de serviços. Por não caber aos privados o reequilíbrio de forças na relação contratual a estabelecer com os consumidores seus clientes, restava assim ao Estado, agora despido das suas funções de prestador destes serviços, regular a sua prestação no sentido de fazer aquilo que antes fazia diretamente, ou seja, promover o justo equilíbrio numa relação contratual.
Para isso instituiu assim um regime jurídico próprio, que desse uma resposta que o direito comum não era capaz, concedendo aos consumidores vários direitos e criando uma maior transparência e equidade nos mercados abrangidos pelos serviços públicos elencados pela LSPE.

Neste sentido, podemos assim concluir que o elenco de serviços públicos essenciais não é fechado, optando o legislador por não se comprometer com uma explicitação do conceito, podendo, assim, em vários momentos, virem a ser aditados novos serviços. E dizemos aditados pois, em nossa opinião, apenas existirão razões para serem aditados serviços, uma vez que, não se nos afigura possível o direito comum passar a dar resposta a situações que anteriormente não o fazia. Em todo o caso será sempre uma opção legislativa.
Saber assim porque são estes e não outros os serviços públicos essenciais, responde também à questão de saber o porquê da sua individualização no ordenamento jurídico.

3. Distinção entre utente e consumidor

Para distinguir então o utente do consumidor, torna-se necessário proceder à sua identificação, até porque, conforme resulta do supra exposto, o utente nasce com a LSPE, enquanto a noção de consumidor tem uma origem anterior, que para efeitos do presente trabalho reportamo-nos apenas à primeira versão da Constituição da República Portuguesa de 1976 que referia no seu artigo 81º alínea m), ser uma incumbência do Estado “Proteger o consumidor” .

3.1 Noção de consumidor

Tendo assim em conta que o consumidor “nasceu” primeiro, analisar-se-á este conceito antes do conceito de utente.
Ora, a legislação portuguesa não nos oferece uma noção exata de consumidor, sendo esta uma das questões que mais problemas tem levantado no direito do consumo, ou seja, a correta delimitação da noção de consumidor. A Lei n.º 24/96 de 31 de Julho (LDC), não responde expressamente a esta questão referindo apenas que: “Considera-se consumidor todo aquele…”, deixando-se assim, ao intérprete a tarefa de indicar a resposta (Cfr. ALMEIDA, Teresa, Lei de Defesa do Consumidor – Anotada, Instituto do Consumidor, 1997, pag. 28).
A Lei n.º 28/91, de 22 de Agosto, revogada pela Lei n.º 24/96 de 31 de Julho, incluía expressamente no seu artigo 2.º uma referência às pessoas coletivas, a qual veio a cair depois na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, aproximando-se assim esta “nova” Lei de Defesa do Consumidor da legislação europeia vigente na altura (Diretiva do Conselho 87/102/CEE, modificada pela Diretiva do Conselho 90/88/CEE de 22 de Fevereiro e a Diretiva 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril.)
Porém, a expressão “todo aquele” utilizada pela LDC, mantém a noção de consumidor num limbo que compete ao aplicador do direito estabilizar.
Conforme refere Calvão da Silva, a melhor interpretação do n.º 1 do artigo 2º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho é: “Todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional – ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto, por oposição a uso profissional – será uma pessoa singular, com as pessoas coletivas a adquirirem os bens ou serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais (Cfr. art. 160º do Código Civil e art. 6º do Código das Sociedades Comercias).” – Cfr. DA SILVA, Calvão, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, 4ª Edição, Almedina, 2006, pag. 44.
Também a Diretiva 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, que foi transposta para o ordenamento português através do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril (alterado posteriormente pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio) e que regula aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a proteção dos interesses dos consumidores, dispõe que consumidor é “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional”.
Claramente aqui o direito comunitário adota uma noção restrita de consumidor, com a qual o legislador Português não se quis comprometer, deixando assim de fora do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril esta noção quando transpôs a Diretiva.
Já o Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, que alterou o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, apresenta uma definição de consumidor idêntica àquela que resulta da LDC (Cfr. alínea a) do artigo 1º-B da lei referida).
É também certo que, o legislador Português, em determinadas leis atinentes a relações de consumo, toma expressamente partido desta noção restrita de consumidor, nomeadamente no caso do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março, que estabelece o regime aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, no caso do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, relativa a contratos de crédito aos consumidores, ou ainda no caso do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro, relativa a contratos celebrados a distância ou fora do estabelecimento e, mais recentemente, com a publicação da Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro que estabelece o enquadramento jurídico dos mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo.

Porém existem autores (Nomeadamente DE OLIVEIRA, Fernando Batista, O Conceito de Consumidor, Perspectivas Nacional e Comunitárias, Almedina), que defendem a posição de que a LDC adota, deliberadamente, um conceito mais amplo de consumidor, nomeadamente um conceito onde cabem também as pessoas coletivas.
A bem da verdade, esta necessidade de reequilíbrio das relações contratuais, onde a parte mais fraca está do lado do aquirente dos bens ou serviços, encontra-se ainda bem patente noutros diplomas legais, tais como o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, (Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais). Aqui a proteção abrange declaradamente os consumidores finais e os empresários ou entidades equiparadas, bastando apenas que assuma a posição de aderente às cláusulas unilaterais e antecipadamente predispostas pela contraparte.
E será também de aqui se referir que o Anteprojeto do Código do Consumidor estendia às pessoas coletivas a noção de consumidor, ou seja, apesar de referir consumidor como pessoa singular, possibilitava também às pessoas coletivas beneficiarem daquele regime em determinadas condições.
Desta forma, também o Anteprojeto demonstrava uma “…preocupação da parte contratual mais débil, debilidade esta que não é exclusivo das pessoas singulares. Sempre na mira do princípio constitucional da igualdade corolário de um Estado de Direito Social e Democrático.” (Cfr. DE OLIVEIRA, Fernando Batista, O Conceito de Consumidor, Perspectivas Nacional e Comunitárias, Almedina, 2009, pag. 85).
Assim, a jurisprudência tem vindo a aplicar casuisticamente o conceito de consumidor às pessoas coletivas. Neste sentido e com maior relevância são os casos do Acórdão da Relação do Porto, de 11/09/2008, Processo n.º 4643/2005, 3ª Secção (relator Fernando Baptista), o Acórdão da Relação do Porto, de 07/03/0225, Processo n.º 0456404 (relator Santos Carvalho) e Acórdão da Relação de Lisboa, de 17/06/2004, processo n.º 4735/2004-6 (relator Gil Roque), todos eles referidos na obra já citada de DE OLIVEIRA, Fernando Batista, O Conceito de Consumidor, Perspectivas Nacional e Comunitárias, Almedina, 2009, pags. 114 a 133.

Nesta mesma obra, faz-se também referência a acórdãos em que os aplicadores do direito optaram por não estender a noção de consumidor às pessoas coletivas, nomeadamente, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 27/09/2001 (relatora Fernanda Isabel Pereira), o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06/11/2007, processo n.º 07A3015 (relator Mário Cruz), o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/01/2005, processo n.º 04B4057 (relator Ferreira de Almeida), o Acórdão da Relação de Lisboa, de 31/05/2007 (relator Granja da Fonseca) e o Acórdão da Relação do Porto, de 28/02/2008 (relator Amaral Ferreira).
Não obstante tudo o exposto, tendemos para que a noção de consumidor se fique pelo seu sentido estrito e não se estenda também às pessoas coletivas. Isto porque e seguindo de perto o entendimento de CALVÃO DA SILVA, na obra supra citada, uma pessoa coletiva não existe para satisfazer as suas necessidades pessoais. Existe sim para a prossecução dos seus fins específicos, sejam eles o lucro económico (caso das sociedades – Cfr. artigo 980º e ss. do Código Civil), ou não (caso das associações e fundações – Cfr. artigo 187º e ss. do Código Civil).
Daqui cremos também poder-se inferir, para efeitos de desequilíbrio entre as partes, que será certamente diferente contratar a aquisição de bens ou a prestação de serviços para as nossa necessidades pessoais enquanto pessoa singular, ou para as necessidades de uma pessoa coletiva. Não existindo neste trabalho grande margem para desenvolver ainda mais este tema e deixando claro desde já a nossa posição, fará aqui todo sentido apelar para o provérbio “A união faz a força”, cujo significado é explicitado no site Ciberdúvidas, disponível em linha em https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-uniao-faz-a-forca/21759, nos seguintes termos: “muitos fracos fazem um poderoso; quando todos ajudam, nada custa”. Ou seja, muitos consumidores juntos fazem um consumidor poderoso.

3.2 Noção de Utente

A noção de utente surge assim apenas para efeitos da LSPE e por referência ao elenco de serviços públicos essenciais definidos pelo legislador nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 1º daquela Lei. Encontra-se assim estabelecida a definição de utente no n.º 3 do artigo 1º da LSPE: “Considera-se utente, para os efeitos previstos nesta lei, a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.”
Resulta desde logo que, a noção de utente não comporta aqui na LSPE as restrições que lhe podem ser apontadas no que se refere à noção de consumidor, nomeadamente, nesta noção de utente cabem já as pessoas coletivas.
Por outro lado, como referem SIMÕES, Fernando Dias e ALMEIDA, Mariana Pinheiro, Lei dos Serviços Públicos Essenciais – Anotada e Comentada, Almedina, 2012, pag. 48, “…na noção de utente não releva a qualidade de profissional do prestador do serviço e o destino a dar a este.”. Isto porque confrontando agora esta figura com a do consumidor e conforme continuam aqueles autores, “A noção de consumidor é uma noção relacional. Só estaremos perante um consumidor quando no pólo oposto encontrarmos um profissional”.
Mas existe ainda uma outra característica do utente que o distingue do consumidor e que consiste no destino que é dado ao serviço que lhe é prestado. No caso do consumidor, este terá que dar um destino não profissional ao serviço que lhe é prestado. No caso do utente dos serviços públicos essenciais é irrelevante o destino que este vier a dar aos serviços.
Resulta assim que o utente é um conceito mais integrador do que o conceito de consumidor, desde logo abrangendo de forma expressa as pessoas coletivas deixadas de forma numa noção restrita de consumidor, bem como, integrando também as pessoas singulares que destinem a uso profissional os serviços públicos essenciais (como sejam os profissionais liberais e comerciantes em nome individual), sendo assim esta última a principal distinção entre utente e consumidor.
Portanto, embora a proteção dos mais fracos numa determinada relação jurídica não seja o fim único da LSPE, os consumidores cabem na noção de utente, beneficiando assim do regime instituído por aquele diploma.
Assim e como resultado do supra exposto, socorrendo-nos mais uma vez da na exposição dos motivos da Proposta de Lei n.º 20/VII que veio depois a dar origem à LSPE, “Encara-se o problema em termos gerais, independentemente da qualidade em que intervém o utente de serviços públicos essenciais, sem prejuízo de reconhecer que é a proteção do consumidor a principal razão que justifica este diploma e de nele se consagrar uma proteção acrescida para o consumidor quando é caso disso”. 

4 Benefícios para o consumidor com regime instituído pela Lei dos Bens Públicos Essenciais

Torna-se assim claro que o consumidor beneficia em larga mediada do regime jurídico instituído pela Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
Neste sentido é aliás impossível passar despercebido que esta lei (LSPE) foi discutida e analisada a par com a Lei de Defesa do Consumidor, Lei n.º 24/96, de 31 de Julho.
Portanto, as vantagens criadas pela LSPE, conferem ao consumidor uma proteção acrescida daquela que resultaria apenas da aplicação da LDC.
De forma sucinta, mas perfeitamente clara referem SIMÕES, Fernando Dias e ALMEIDA, Mariana Pinheiro, Lei dos Serviços Públicos Essenciais – Anotada e Comentada, Almedina, 2012, pag. 12, quais os direitos que resultam para os utentes: “O direito de participação das organizações representativas dos utentes (art. 2.º), cujo elenco é certificado nos termos do art. 16.º; o direito a quitação parcial (art. 6.º) e o direito a uma factura que especifique devidamente os valores que apresenta (art. 9.º). O legislador confere outros direitos aos utentes, correlativos dos deveres de diversa ordem que são impostos aos prestadores dos serviços: o dever de proceder de boa fé, tendo em conta a importância dos interesses dos utentes (art. 3.º); o dever de obediência a elevados padrões de qualidade (art. 7.º) e o dever de proceder ao acerto dos valores cobrados (art. 12.º). Faz-se impender sobre o prestador do serviço o ónus da prova de todos os factos relativos ao cumprimento das suas obrigações (art. 11.º). O legislador complementa o regime proibindo a suspensão do serviço sem pré-aviso adequado (art. 5.º) e vedando a imposição e cobrança de consumos mínimos (art. 8.º). Para além disso, estabelecem-se regras próprias em matéria de prescrição e caducidade do direito ao recebimento do preço do serviço prestado (art. 10.º). A natureza imperativa dos direitos conferidos aos utentes veda qualquer convenção que exclua ou limite tais direitos, sob pena de nulidade. Trata-se de uma nulidade atípica, pois só pode ser invocada pelo utente, o qual é livre de optar pela redução do contrato (art. 13.º). Ao ter o cuidado de ressalvar todas as disposições legais que, em concreto, se mostrem mais favoráveis ao utente (art. 14.º), o legislador deixou bem claro que a Lei não se aplica se outras disposições legais conduzirem a resultados concretos mais favoráveis ao utente dos serviços públicos essenciais. Por fim, favorece-se o recurso a mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos, suspendendo-se no seu decurso o prazo para a proposição da acção judicial ou da injunção (art. 15.º).”
Fica desta forma consagrada uma proteção acrescida para o consumidor de serviços públicos essenciais.
Dos direitos supra elencados, destacamos os que resultam do artigo 3º e 7º, os quais julgamos serem os objetivos maiores da LSPE, ou seja, proteger os interesses económicos dos utentes o que apenas se alcança com elevados padrões de qualidade.
Referem  SIMÕES, Fernando Dias e ALMEIDA, Mariana Pinheiro, Lei dos Serviços Públicos Essenciais – Anotada e Comentada, Almedina, 2012, pag. 10, citando MENEZES CORDEIRO que “O objetivo mais imediato da lei é normalizar, segundo padrões elevados, a prestação dos serviços públicos vitais: de tal modo que a empresa concorrente, para conseguir vantagem, não possa baixar o nível de qualidade envolvida.”
Fica assim claro que os consumidores beneficiam do regime jurídico instituído pela LSPE, pois embora se alargue o leque de aplicação desta lei a quem não é consumidor, o certo é que “…a proteção do consumidor é a principal razão que justifica este diploma” (Cfr. SIMÕES, Fernando Dias e ALMEIDA, Mariana Pinheiro, Lei dos Serviços Públicos Essenciais – Anotada e Comentada, Almedina, 2012, pag. 10).
Não obstante o supra exposto, é certo que a jurisprudência, em alguns casos concretos, acaba por transmitir uma ideia diferente.
É o caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2016, disponível em linha em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/93E2A36AB705659880257FD8005A7C11 no qual, em suma, acaba por atribuir uma indenização a um utente do serviço público essencial de fornecimento de comunicações eletrónicas (no caso o serviços de telefone fixo), por incumprimento parcial na prestação do serviço. Porém, o que se destaca neste acórdão é o facto do mesmo revogar o acórdão da Relação do Porto (acórdão recorrido), o qual considerava o utente também um consumidor, sem que isso fosse suficiente para atribuir qualquer indemnização mesmo estando provado o incumprimento parcial do contrato de prestação de serviços. Referia-se naquele acórdão do Tribunal da Relação do Porto (que não se encontra sumariado nem disponível em linha), que apesar de ter ficado provado que o utente “Não recebeu muitas encomendas” por via do deficiente cumprimento do contrato de prestação de serviços, podia ainda assim ter-se “…socorrido dos demais serviços que possuía ativos para fazer face às suas necessidades”. E a esta conclusão chegou o Tribunal da Relação do Porto, dando como assente que o utente, para além desta qualidade, assumia ainda a posição de consumidor. Era caso para dizer, com ironia como também o fez o utente (recorrente) em sede de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, cabia ao utente (e consumidor) apresentar elevados padrões de cuidado quando contrata serviços públicos essências, arruinando assim todos os objetivos tanto da LSPE, como LDC.
Ora, o supremo Tribunal de Justiça corrigiu, no nosso entender, o sentido da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, em primeiro lugar desconsiderando o utente como consumidor, pois que se tratava de uma pessoa coletiva e que utilizava os serviços de comunicações eletrónicas contratados para a realização do seu escopo social, mas ainda assim, ficando apenas com a sua veste de utente, os elevados padrões de qualidade a que a prestação de serviços públicos essenciais deve obedecer não se podiam compadecer com um incumprimento, de tal forma significativo, que acabou por ser dado como provado que a autora “não recebeu muitas encomendas”.
Portanto, neste caso em concreto, das duas decisões resulta que o utente, despedido da sua veste de consumidor, acabou por ser mais protegido (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça) do que quando se encontrava coberto pela capa de consumidor (Acórdão da Relação do Porto).
Trata-se este de um caso pontual, que aqui trouxemos, apenas para verificar que ainda faltam caminhos para percorrer para sedimentar as noções de utente e consumidor e conjugar estas duas figuras para uma melhor aplicação do direito.


5 Conclusão

Mostra-se assim essencial, para a boa aplicação do direito, um bom conhecimento das figuras do utente e consumidor pois, só assim, se alcançará a justa composição dos litígios.
Resulta também que o mercado dos serviços públicos essenciais apresenta uma importância que obriga o legislador a encontrar formas específicas para o seu tratamento, pois trata-se de um mercado em que o desequilíbrio de poder entre as partes é acentuado, mesmo que aquele a quem o serviço é prestado não seja um consumidor.
Consideramos assim que os elenco dos serviços públicos essências atualmente em vigor, são serviços que integram setores estratégicos do próprio Estado que, tomando a posição de permitir que os mesmos possam ser prestados por privados, tem no entanto a consciência (o Estado) que só os regulando de forma específica poderá alcançar os objetivos pretendidos, ou seja, serviços que apresentem elevados padrões de qualidade.  

BIBLIOGRAFIA:

- SIMÕES, Fernando Dias & ALMEIDA, Mariana Pinheiro, Lei dos Serviços Públicos Essenciais – Anotada e Comentada, 212, Almedina.
- DA SILVA, João Calvão, Venda de Bens de Consumo – Comentário, 2ª Edição, Almedina, 2003.
- ALMEIDA, Teresa, Lei de Defesa do Consumidor – Anotada, Instituto do Consumidor, 1997.
- DE OLIVEIRA, Fernando Baptista, O Conceito de consumidor, Perspectivas Nacional e comunitária, Almedina, 2009

FONTES ON-LINE
http://www.dgsi.pt/
http://debates.parlamento.pt
http://www.pgdlisboa.pt
https://ciberduvidas.iscte-iul.pt


João Vasco Loureiro